"O personagem vive a vida, que devia ser a nossa, a vida que recusamos. Outra verdade, que julgo definitiva, é a seguinte: a alegria não pertence ao teatro. Pode-se medir a força de uma peça e a sua pureza teatral pela capacidade de criar desesperos. O teatro ou é desesperado ou não é teatro".
Nelson Rodrigues

domingo, 29 de agosto de 2010

Suffering from a kind of social anxiety.

Please do not disturb.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Vacinada

Após colocar um pouco do líquido laranja na seringa - mais parecido com aqueles xaropes que vez por outra tomamos durante a infância - a enfermeira cuidadosamente disse: "temos que injetar no antebraço, perto da articulação". Afirmava que o procedimento era absolutamente indolor, mas apesar disso, suei frio. Afinal, fazia bem pouco tempo, tinha completa fobia de qualquer procedimento injetável.

Depois da fobia,é certo, veio um estranho prazer por vacinas atiradas no braço como dardos, vacinas certeiras, que reduziam a dor a um sentimento pontiagudo. Quando descobri isso renovei toda a caderneta de vacinação. Resolvi tomar todas as vacinas disponíveis no mercado para os adultos. Eram poucas, e agora queria mais. E então, o sonho.... A enfermeira dá três petelecos no líquido denso e crava num espaço milimétricamente calculado entre alguns vasos e artérias...Pimba.

Levo algum tempo até me dar conta de que posso respirar normalmente, e que prender a respiração é um refelxo tão arbitrário e inútil nos momentos de dor intensa, que tem como única consequência o desfalecimento. A enfermeira retira o êmbolo, rasga um pequeno saquinho que contém um líquido viscoso e translúcido, e começa a diluir com uma colherzinha o líquido laranja, enquanto joga nele o conteúdo do saquinho. E a agulha lá, encravada. Ao perguntar o motivo daquilo tudo, ela me diz: "E contra a difteria, o governo está preocupado pois a população não aderiu à campanha". Penso com os meus botões: "Claro, quem vai aderir à esse ritual masoquista estúpido?". Acordo antes que a gentil enfermeira terminasse o procedimento...

domingo, 30 de novembro de 2008

A menina e a nuvem

(Quinta-feira , 09 de Março de 2006)
Certo dia uma rajada de vento soltou a menina no mundo... desde então ela é sozinha. Nem por isso deixou de ter medo do escuro.
Toda noite antes de dormir ela chora, e sua noite se torna a mais negra do universo. E então ela morre algumas vezes antes do amanhecer.
A menina é um baú. Guarda em si brincadeira de roda, pé de jaca, bicicleta, beijo roubado, marmelo... Guarda também toda a tristeza do mundo – por isso a chamam de menina triste.
Com receio de que o mundo descobrisse sua tristeza, a menina resolveu construir um castelo de areia – no entanto, a cada lágrima sua, a areia, matéria fina, se desmanchava. Exposta em carne viva, a menina se sentia muito, muito feia. Ainda assim era bonita, afinal, o que seria das rosas sem seus espinhos?
Menina sonhava dia e noite, noite e dia e foi assim que se apaixonou pela nuvem. Viu príncipe encantado em cavalo alado, espada, castelo e até fadas! Mas a nuvem era só nuvem e não entendia sua brincadeira de criança. Como todas as outras nuvens estava ali só de passagem. A menina não sabia. Cismou com ela e chegou a construir asas para tentar alcançá-la. A cada tombo a menina media a distância entre o céu e a terra.Teimou em pedir para que a nuvem descesse, mas essa, com toda sua altitude, não quis ver de perto o chão: preferiu ficar ali no céu mesmo, pois deste modo podia olhar a menina e o mundo todo, e podia se apaixonar por todos os seres existentes.
Mas Menina, em sua pequenez infantil de olhos miúdos, só olhava a nuvem.
Foi então que chegou o dia que os ventos já haviam assoprado: a nuvem partiu. A menina continuou olhando pro céu. Estava escrito, mas mesmo assim a menina chorou.
Para a nuvem aquilo tudo era muito estranho. Não entendia os sentimentos humanos, e, dentre eles, a tristeza e o sofrimento eram os que mais a intrigavam. Inquiriu o choro da menina. Esta não pode responder, mas era certo que chorava por sentir-se só. Então a nuvem achou que o choro era chuva. Só que o choro não era chuva.
A partir desse dia, a menina chorava o dia inteiro, mesmo quando seus olhos se recusavam a contar essa verdade para o mundo.
Jurou esperar a nuvem voltar...
Disse que já ouvira falar do amor de um principezinho e uma flor...
Desenhou a nuvem em folha de papel que se desmanchou na água...
E continuou esperando, mas a nuvem, essa coisa da natureza, preferiu não surpreendê-la.
A menina disse pra si mesmo que ia morar num trem para seguir a nuvem ali de baixo...
E depois adormeceu.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Panos

- Minha filha, tenho que comprar-te roupas maiores!

- Mãe, todas tuas roupas são pequenas demais para mim... Minha carne se insinua por entre os panos, e não é por desobediência... já não consigo cobrir a mim mesma.

Se soubesses quanto frio sinto às vezes.... Ai mãe, o mundo não é teu colo. Já não durmo mais, e tuas mãos não seguram mais meus pés! Agora, mãe, só tenho minhas próprias roupas a vestir...

Mas olhe, vê se não são familiares esses panos... São teus panos mamãe! Me deste com todo amor, e sonhei um mundo maior do que eles poderiam cobrir. Não chores, não te culpo por não ter me dado mais. Nenhuma mãe cobre seu filho por inteiro. Me deste mais, muito mais do que imaginas... Mas tua herança transbordou esses vestidos.

Pensas que sofro, só porque me aparecem as carnes... Sinto que minha nudez parece estranha a ti. Os panos são conhecidos, mas a carne mãe, essa é só minha. Tens razão ao pedir que me cubra - é verdade que sinto a dor e o frio de ter parte do corpo à mostra. Mas mesmo assim sou feliz, muito mais do que possas imaginar!

Não te agridas com a minha nudez! A semelhança das vestes pode ser fascinante, mas também a diferença radical do corpo é de grande beleza!!! O amor com que me presenteaste, está em mim, como uma marca irremovível, embora talvez não reconheças como teu. Também esse corpo, que agora caminha por aí, aparecendo nas brechas dos vestidos, foi gerado e cuidado por ti. Corpo que aparece para o mundo, mas não é indefeso; corpo que é frágil e ao mesmo tempo firme, muito mais do que possa te parecer por detrás desses panos.

- Por favor mãe, não me compre roupas maiores.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A tinta

Existem momentos em que o silêncio é mais eficaz que uma enxurrada de palavras. Fico aqui tentando dizer, dizer, e quanto mais tento, mais me angustio, porque mais distante fico daquela palavra perfeita, daquilo que vai definir, colocar um ponto de basta na frase, e que, a partir dali, tudo vai mudar. Estou em busca dessa palavra que vá romper a repetição, que vá operar uma outra coisa. Em busca de sair do poço do desânimo, do escândalo - daquilo que, uma vez feito, parece manchar tudo, como a caneta que estoura no meio da carta, e esparrama aquela tinta toda sobre o que vinha sendo escrito. É assim que me sinto quando, ao escrever minha história escolhendo as minhas palavras, no meu estilo de texto, de repente, a porra da caneta estoura e borra tudo, e fico tentando secar aquela tintalhada toda, e mancha, mancha bastante, e alguma coisa ali se perde.

Se perdemos o texto original, é preciso retomar dali, é preciso incluir a mancha. Mas a mancha deixa aquele papel todo feio, e é preciso decidir por deixá-la ali, ou jogar fora aquele papel pra reescrever a história, ou simplesmente ignorar a história que teve o acidente da mancha, e escrever uma outra. A história que vinha sendo escrita quando do acidente, bem, essa parece levar a mancha, ou a sombra da mancha, mesmo quando escolhemos outro papel. É impossível reescrever a frase sem se lembrar que foi naquele momento, naquele pingo do i, que a bendita caneta resolveu estourar. Dá um medoooo. Mas ao mesmo tempo, é impossível ignorar a beleza daquela história que vinha sendo escrita, a história que agora vai ter que incluir a mancha, e que era tão perfeita até a caneta sujar tudo.

E parece que quanto maior a ânsia em secar o borrão, em colocar outra coisa no lugar, mais esquisito fica. Queria calar diante da mancha, queria poder olhá-la de frente, essa feiura toda e poder aceitá-la como parte da história bonita, que não perdeu sua beleza, que ainda começa naquele empório, nos olhares que congelaram o movimento seguinte, no beijo inevitável, no riso incontrolável de quem tinha encontrado uma felicidade inimaginável e transbordante num primeiro encontro. Ou melhor, que começa antes que soubéssemos que ela já estava sendo escrita, no homem desconhecido que admiraria (quem sabe um dia?) meu vestido colorido, no enigma e na beleza que aquilo evoca em mim, na beleza tímida de quem estava atrás da porta quando toquei a campainha, e no sorriso que fez o mundo inteiro desaparecer e congelar naquela porta se abrindo e no encontro (ao mesmo tempo inesperado e esperado), nas palavras atrapalhadas, na mão que estende o papel, na minha cabeça baixa e coração palpitante sendo interrompida na suposta leitura quando do pedido do telefone, na felicidade da mariola....

Sim, dá vontade de continuar escrevendo essa história.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Perfil

Ela não se conhecia por inteiro. No entanto, sabia que seu melhor ângulo - aquele no qual ela se sentia mais a vontade e feliz consigo mesma - era o de quem a via pelo perfil esquerdo. Rosto do lado esquerdo, um pouco inclinado para baixo. Olhar perdido no horizonte, boca fechada com suavidade, quase esboçando um sorriso. Era assim que gostava de si. Se os cabelos estivessem presos em coque, poder-se-ia dizer que era uma estátua clássica. De cabelos soltos era Monalisa. Jogava para o mundo todo o enigma que guardava em si : Decifra-me ou te devoro.

O que guardava de sua imagem era uma sucessão de fotografias, poses, momentos capturados, perspectivas congeladas e imóveis - não se conhecia em movimento. Sim, ela já se vira no espelho e até em fitas de vídeo, mas ali não se reconhecera. Ela não sabia o que sua mobilidade provocava nos outros. Tinha um pouco de vergonha de seus gestos estabanados, de suas gargalhadas espontâneas e despropositadas, ela se preferia assim, uma imagem capturada num instante. A essa imagem dava o nome de eu.

Se por acaso alguma pessoa desprevinida viesse de sua direita, tratava de se esconder colocando delicadamente a mão no rosto ou jogando os cabelos de tal forma que cobrissem suas bochechas até quase o nariz - abria apenas uma breve concessão para os lábios. Se sentia completamente desnudada do lado direito, precisava se cobrir para que não a vissem em carne pura. Não sabia exatamente porque se sentia assim.

Quando criança não se preocupava tanto com isso, aliás, nem sabia que os outros a viam. Nessa época imaginava-se transparente, pois era através dessa transparência que ela entrara em contato consigo, era assim que se conhecia. Conforme foi crescendo, começou a perceber que não era tão abstrata quanto pensava, viu que os outros a observavam em uma materialidade que até então lhe escapara. E foi aí que percebeu que direita e esquerda eram diferentes.

Então, já não pôde transitar de um lado para o outro sem se incomodar com isso. Convivia com o que era seu e com o que era estranho a si. Entendia que não se tratava de dois lados da mesma moeda. Direita e esquerda nunca mais se encontraram.